RIO – Um câncer contagioso como vírus parece algo saído de nossos piores pesadelos. Embora raros, tais casos são uma realidade na natureza. Até recentemente, eram conhecidas quatro linhagens de células cancerosas que poderiam ser passadas de um animal para outro: duas afetando os demônios-da-tasmânia, espécie de marsupial da ilha na costa australiana; uma, com idade estimada em mais de seis mil anos, atingindo os cachorros; e outra numa espécie de amêijoa (Mya arenaria).
Agora, no entanto, cientistas identificaram mais quatro que também atacam moluscos marinhos bivalves de conchas como as amêijoas, sendo que uma inclusive teve origem em uma espécie diferente da que é afetada hoje, no primeiro episódio do tipo já relatado. Segundo os pesquisadores liderados por Stephen Goff, professor do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Centro Médico da Universidade de Colúmbia, nos EUA, porém, não há risco de a doença passar para humanos que consumam os moluscos.
De acordo com o estudo, publicado na edição desta semana da revista “Nature”, células cancerosas de uma linhagem específica estão se espalhando na população de uma espécie de mexilhão (Mytilus trossulus) encontrada na costa da província da Colúmbia Britânica, no Canadá; outra linhagem, entre exemplares de amêijoas Polititapes aureus coletadas na costa atlântica da Espanha e também do Canadá; e duas linhagens de origens independentes em berbigões da espécie Cerastoderma edule no Leste do Atlântico. Em todos casos, análises genéticas comprovaram que os cânceres — que atingem o sistema circulatório dos animais, como a leucemia em humanos — têm um perfil de DNA diferente do dos moluscos afetados, isto é, foram contraídos.
Além disso, as mesmas análises mostraram que as células cancerosas que estão se desenvolvendo nas amêijoas P. aureus na verdade são provenientes de outra espécie do molusco, a Venerupis corrugata. Surpreendentemente, os cientistas verificaram que as próprias amêijoas V. corrugata, que dividem habitat com as P. aureus, não parecem sofrer com o câncer. Os pesquisadores suspeitam que, com o tempo, as amêijoas onde a doença se desenvolveu originalmente adquiriram resistência à infecção, e para sobreviver as células cancerosas passaram a atacar uma espécie relacionada.
“Juntos, estes achados parecem pintar um cenário de campos de mexilhões ao redor do mundo tomados por células cancerosas metastáticas que se espalham tanto intra quanto entre espécies”, escreveu Elizabeth P. Murchison, pesquisadora do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, em comentário que acompanha o artigo na “Nature”. “E embora os mecanismos de transmissão do câncer ainda não estejam claros, a natureza imóvel destes invertebrados que se alimentam por filtragem sugere que as células cancerosas flutuam no ambiente marinho e invadem seus hospedeiros por meio de brechas nos seus sistemas respiratório ou digestivo”.
Ainda de acordo com os pesquisadores, o potencial de as células cancerosas se tornarem agentes infecciosos livres entre os moluscos levantam questões sobre se isso seria possível também entre seres humanos. Historicamente, há relatos de transmissão da doença de pessoa a pessoa, como durante a gravidez, tratamentos experimentais, por acidentes cirúrgicos e, em especial, por transplantes de órgãos. Mas tais casos são extremamente raros, ocorrendo em apenas cerca de 0,04% das operações, e nunca além de entre dois indivíduos, o doador e o receptor. Mais recentemente, no entanto, foi relatado o caso de uma pessoa imunodeprimida com células aberrantes de um verme da família das tênias espalhadas pelo seu corpo, o que demonstrou que, pelo menos em condições especiais, células cancerosas podem invadir outras espécies, como os cientistas viram agora acontecer entre as amêijoas.
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